IN THE FLESH

24/05/2014 21:44

 

Atenção: contém spoilers!

 

     Não é de hoje que o tema do apocalipse zumbi inspira uma quantidade considerável de filmes, séries, livros e quadrinhos. Graças à seu apelo simbólico, materializado na figura dos horrendos zumbis, estas histórias usam na maioria das vezes as situações de completo terror como pano de fundo para discutir a condição humana em situações limites e extremas de sobrevivência. Contudo, é extremamente raro (diria inexistente) nestas narrativas os realizadores voltarem suas atenções para os próprios zumbis como protagonistas. Neste sentido, In The Flesh, série britânica realizada este ano (e que receio não volte para uma 2ª Temporada), deixa de lado o simbolismo óbvio da sobrevivência pós-apocalíptica e se debruça sobre outros subtextos, igualmente plausíveis e facilmente identificáveis em nossa sociedade: o preconceito, a intolerância e a discriminação contra o “diferente” (ou minoria).

     Assim, numa Inglaterra onde a “cura” para os portadores da Síndrome do Falecimento Parcial (SFP) é uma realidade, a série conta a história de Kieren Walker (Luke Newberry), um paciente recuperado que está prestes à voltar para a família que, mesmo incomodada com o fato de não saberem lidar com a atual condição do filho, o recebe com relativa empolgação. Além disso, não são todos na cidadezinha de Roarton que estão felizes com esta “reintegração” dos ex-zumbis à sociedade. Inflamados pelo vigário local, um sujeito claramente fundamentalista e manipulador, e também pelo chefe miliciano Bill Macy, Roarton é uma panela de pressão prestes à estourar, onde o ódio aos ex-pacientes é latente.
 
     Além de ter que lidar com a intolerância dos próprios vizinhos, Kieren tem de lidar também com a culpa que sente por ter matado tanta gente, sobretudo os flashbacks recorrentes que tem da jovem Lisa, quando esta foi literalmente comida por Kieren. Além disso, a própria medicação de Kieren é um inconveniente, já que além de ser fisicamente doloroso também contribui para a ativação das penosas lembranças de Kieren. É interessante observar também, as lentes usadas por Kieren, onde seu tamanho um pouquinho maior que o usual bem como sua superfície brilhante e que sempre reflete pontos brancos de luz, nos lembram o tempo todo a verdadeira condição do rapaz.
 
     Fotografado constantemente com cores frias e em tons cinzas na maior parte do tempo, a série evoca o tempo todo um clima de melancolia e opressão que nos sugere todo o drama pessoal de Kieren. Aliás, é curioso que os únicos momentos em que a fotografia adota tons mais quentes e mais coloridos são justamente aqueles relativos aos flashbacks do protagonista, dando à estes um caráter inequívoco de rememoração, e não de pensamentos traumáticos relativos ao seu passado. Outro aspecto que chama atenção são as recorrentes névoas que cobrem Roarton, salientando ainda mais a tensão que paira naquela cidade.
 
     Outro aspecto interessante diz respeito ao design de produção. Observem por exemplo como o espaço totalmente asséptico da “clínica de reabilitação” é curiosamente similar ao próprio aspecto cadavérico dos pacientes dali. Além disso, é interessante o fato de Roarton ser apresentada primeiro a partir de suas ruínas (com inúmeros dizeres de ódio e revolta contra os zumbis) e depois, quando mostrada de fato, está envolta em constante névoa e completamente vazia de pessoas nas ruas. Além disso, o bar onde se encontram os milicianos de Bill Macy mais parece uma espécie de templo de contemplação aos soldados/ milicianos mortos na época da Ascensão. Não, você não vê nas paredes imagens de civis mortos pelos zumbis, mas de milicianos mortos por estes.

     Outro exemplo interessante e similar diz respeito aos quartos de Kieren e Rick: o primeiro, se depara com um ambiente recomposto que denota uma tentativa de seu pai em tentar deixar as coisas do jeito que eram. Já a família de Rick Macy praticamente criou um “mausoléu” em homenagem a este. Em ambos os casos, tais tentativas só reforçam a inadaptabilidade destes jovens com a nova vida que levam e também reflete diretamente a personalidade de cada um: se no quarto de Kieren predomina objetos que personificam sua sensibilidade artística, como livros, filmes e pinturas espalhadas pela parede, na casa e no quarto de Rick é predominante a quantidade de troféus, medalhas e camisas de times de futebol, num exemplo claro de que este jovem tivera uma criação voltada para a competição e autoafirmação, uma necessidade que reflete muito mais a personalidade possessiva de Bill do que do próprio filho. Aliás, observem os dois pôsteres de mulheres seminuas no quarto de Rick e percebam a sutil ironia que estas imagens representam, se levarmos em conta a verdadeira relação entre Kieren e Rick.

     Bill Macy, como um dos antagonistas desse projeto, também é um sujeito complexo à sua maneira. Se sentimos repulsa ao vê-lo executar determinada personagem portadora de SFP, é em sua tentativa de reintegrar seu filho junto aos outros que percebemos sua real personalidade: mesmo amando seu filho, Bill nunca deixará de ser um indivíduo raivoso e intolerante prestes a “eliminar” qualquer um que lhe pareça diferente, mesmo que precise mascarar a verdadeira condição do filho.

     E se Bill funciona como algoz, é mesmo o deplorável vigário de Roarton o verdadeiro vilão da série. Intolerante ao extremo, o vigário é um indivíduo que, julgando-se líder de uma cruzada apocalíptica, não hesita em manipular seus fiéis para convencê-los a participar de sua milícia na luta contra os SFPs, usando trechos específicos da Bíblia para legitimar seu ponto de vista, criando as condições para uma “guerra santa” que, de forma simbólica, não deixa de ser um sutil subtexto crítico à política americana antiterrorista (sobretudo aquela da Era Bush).
 
     E subtextos existem aos montes em In The Flesh. O ódio aos ex-zumbis, por exemplo, traduz-se como o ódio que indivíduos intolerantes e fundamentalistas sentem por minorias. E o fato desta raiva ser “liderada” por um padre é obviamente uma crítica ao comportamento abusivo de todos aqueles religiosos contra àqueles que não estão de acordo com suas próprias idiossincrasias. E confesso que no começo da série achei desnecessário o interesse amoroso de Kieren por Rick, passando a impressão de que os realizadores pudessem apenas escancarar ainda mais o arquétipo óbvio do tema homossexualismo. No entanto, ao abordar este aspecto ambiguamente, os realizadores ganharam pontos ao não exagerarem esta relação entre os dois, mesmo que o close específico na inscrição feita na parede de uma caverna enfraqueça um pouco esta abordagem.
 
     E se a intolerância é o elemento que permeia toda a série, este subtema fica mais complexo de lidar se compreendermos que este ódio justifica-se pelo fato dos zumbis terem matado muitos dos parentes e amigos daqueles que agora reagem a qualquer reintegração de um portador de SFP. Assim, não adianta políticos irem àquela cidade tentar convencer os moradores do contrário, pois seu discurso não florescerá simplesmente porque a intolerância cegou a todos. E não adianta os “reabilitados” sentirem culpa pelos seus atos passados. Eles não encontrarão ninguém que queira lhes dar perdão. Assim, é melancólico porém plausível a cena onde determinada personagem amiga de Kieren (outra ex-zumbi) vai embora da cidade. Afinal de contas, mesmo expansiva e blasé, a sujeita compreende que nunca será bem-vinda naquela cidade.
 
     Desenvolvendo com eficiência seus arcos dramáticos no decorrer dos três episódios – sobretudo entre os Walker e os Macy – In The Flesh bem que poderia voltar para próximas temporadas pois a quantidade de situações vividas no episódio final poderiam ser perfeitamente retomadas posteriormente, como por exemplo, o subtema referente ao Profeta Morto-Vivo, a relação entre o jovem Philip e a amiga de Kieren e a própria postura que Kieren poderia ter em Roarton. Seja como for, In The Flesh funcionou perfeitamente como uma interessante fábula sobre o ódio às minorias. E se faltou mais sangue do que estamos habituados, isso foi compensado por um eficiente drama intimista que cumpriu àquilo que se propôs.

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